Livro: "100 dias de quarentena: No tempo em que a vida parou"

Daqueles dias em que o inverno, sabedor de que o fim de sua temporada está próximo e que a primavera já compartilha seus primeiros sinais, quer mostrar serviço. O dia lá fora, de sol e céu azul, está acompanhado de um vento forte e frio que vem do Atlântico, invade a nossa rua e sinaliza sua velocidade no vai e vem das plantinhas do canteiro na área externa do apartamento.
A rua, não muito extensa, descansa solitária e sem incômodos. Apenas os carros, em grande quantidade como nunca, alinham-se em silenciosa fila indiana. Me vem à lembrança o poema “Dorme ruazinha”, do Quintana. Alheios ao nosso isolamento e às nossas razões, três passarinhos sapecas ensaiam uma algazarra no parapeito da varanda, mas logo desistem da brincadeira e voam às pressas, em diferentes direções, como se seguissem um dos protocolos de segurança contra a transmissão da covid-19.
Os portais anunciam que Portugal fechou suas fronteiras com a Espanha. A Europa fechou suas fronteiras para estrangeiros durante os próximos trinta dias. Sem autorização expressa, ninguém entra nem sai. O cerco contra a covid-19 está se fechando. Ou contra nós? Em um jornal local, a entrevista com um médico que projeta uma tsunami pela frente e critica a demora do governo em decretar estado de emergência. Pelo Facebook, um vídeo onde o tenor italiano Maurizio Marchini sai à varanda de seu apartamento e, a plenos pulmões, canta para seus vizinhos Nessun Dorma a Firenze, salvo engano da ópera Turandot, de Giacomo Puccini. Confortamo-nos com a solidariedade. Mesmo na agora distante Itália. Por enquanto, desconhecemos se há algum tenor que faça morada em nosso prédio.
Lá fora, o sol, o céu azul em seu estado pleno e os ventos que sopram do Atlântico, que os portugueses chamam de nortadas, são um convite para ganhar o mundo. Mas o mundo lá fora, por enquanto, é da covid-19.