Livro: "PALAVRA, SENTIDO E LIBERDADE: Exercícios de releitura bíblica"

A Bíblia não é um patrimônio exclusivo das igrejas cristãs. A Bíblia é um patrimônio de toda cultura do ocidente. Por quase dois milênios, ela tem sido um dos textos fundantes de nossa visão de mundo e de nossa ética. A Bíblia cristã é um texto enormemente polifônico. Ali falam muitas vozes, oriundas de tradições culturais diferentes. Esse texto, tão precioso para enormes contingentes de pessoas, não nasceu pronto como o temos hoje. Ele existiu em formas muito variadas antes de se tornar palavra escrita. Ele foi tradição oral, palavra viva e circulante transmitida de geração em geração. Ele abriga em si contos, sagas, lendas, mitos, provérbios populares, salmos, narrativas fantásticas e meditações de sabedoria, reunidas nos livros que lhe compõem.
Talvez seja correto dizer que a Bíblia é o livro mais popular de nossa cultura. Multidões de pessoas no mundo todo se reúnem ao redor de seus conteúdos. Para tantas dessas pessoas, ela é a única literatura de referência, pois nela essas pessoas creem encontrar alimento existencial, encorajamento, discernimento e sentido. Lembro-me com saudade dos meus primeiros contatos com esse livro. Eu quis devorá-lo num sobressalto. Fui descobrindo paulatinamente que a Bíblia, escrita por comunidades, foi forjada para ser lida comunitariamente. Depois descobri que as comunidades na base da produção da Bíblia eram compostas por pessoas humildes, pobres, muitas delas perseguidas por sua fé. Tudo isso ampliou o encanto e o lugar que a Bíblia foi ganhando na minha própria caminhada como uma pessoa de fé.
Apesar de tudo isso, estamos falando de um livro escrito a mais de dois mil anos, em línguas que hoje estão mortas, e possuindo algumas versões diferentes (Bíblia Hebraica, Católica e Protestante). Essas características impõem algumas dificuldades à sua leitura e à sua interpretação. Uma das tentações mais frequentes, que objetivam contornar essas dificuldades, é a intepretação literal, própria do fundamentalismo cristão. O fundamentalismo cristão e a interpretação literal dos textos da Bíblia visam homogeneizar as diferentes visões de Deus e do ser humano presentes nesse livro religioso. De olhos fechados para o grande número de contradições que essa postura exige, multidões continuam a crer que cada letra da Bíblia deve ser crida tal e qual, porque inspirada por Deus em sua composição. O pastor Caio Fábio costuma dizer que “a Bíblia é a mãe de todas as heresias”, quando lida de modo literal e com espírito dogmático, e sem Jesus como princípio hermenêutico.
O que queremos com esse livro é conversar sobre tudo isso. Mas além disso, esse texto está cheio de exercícios concretos de releitura bíblica, feitos com compromisso com as Sagradas Escrituras, mas também com compromisso com a vida de toda criação. Composto por reflexões que venho fazendo ao longo dos últimos anos, você vai encontrar o uso de alguns recursos das ciências da linguagem, como a hermenêutica e a exegese, mas sem o pedantismo e o modo hermético próprio da escrita acadêmica. O espírito que nos move é a vontade de compreensão profunda de nossas convicções de fé, aliada ao desejo de que isso se converta numa vida melhor, mais leve, menos egoísta e mais fraterna, especialmente em relação aos excluídos de nossa sociedade. Esse texto também quer ser uma demonstração de como a Bíblia continua a ser “luz para nosso caminho e lâmpada para nossos pés” (Salmo 119,105). E eu fico feliz que você tenha aceitado o meu convite para trilhar esse caminho de fé e de iluminação: da mente e do coração!
(*Texto da Introdução)