Livro: "Tempos de memória: Crônicas"

SINOPSE:

A DISCIPLINA DA MEMÓRIA*
A memória é uma força poderosa. Sem ela, não aprendemos. Sem ela, não nos relacionamos. Sem ela, somos esquecidos (em sentido duplo). Das várias possibilidades que a memória sustém, para mim, a mais fascinante é a capacidade imaginativa e, por extensão, a capacidade de narrar. Neste terreno tão fértil quanto movediço, é possível mergulhar uma madelaine em uma xícara de chá e recuperar o tempo vivido; evocar um amor perdido; andar pelos corredores de uma escola ou guiar o primeiro carro, quem sabe, um fusca 1970.
A memória atualiza o momento de dor e cegueira que abre os ouvidos para a música de Beethoven e é ela quem também conduz até o presente o John Wayne de Rastros de Ódio, operando-se o inesperado: a narrativa da memória possibilita unir dois pontos diferentes. No primeiro, um menino no bairro de São Raimundo acolhe em seu coração e retinas o fato dado em cinemascope de que o herói é um homem branco ungido pelo sagrado direito de odiar os índios. No segundo, o homem de letras desconfia daquilo que o menino acolheu há tanto tempo na singeleza de seu coração e define o que esses lugares determinados discursiva e socialmente vêm a ser: manipulação.
Atados pela força da palavra, esse conjunto de elementos querem se manifestar como obra, fruto daquela mesma disciplina que ordena CD´s e livros à espera do olhar amoroso de seu dono. Não estaríamos, pois, em atmosfera mais espessa à qual poderíamos chamar de disciplina da memória? A disciplina para ordenar livros, para ordenar CD´s, para selecionar o que cabe ou não no Ipod seria a mesma que seleciona e burila a matéria que caberá no livro?
E se o livro é matéria de uma fatura, de algum modo confirma-se nestas crônicas a poderosa vontade do fazer, do criar com as próprias mãos. Aqui os brinquedos produzidos pelas crianças em São Raimundo, ali a amassadeira cuidadosamente entregue ao filho mais novo, mais adiante a nostalgia das cartas datilografadas e tudo isto se perfazendo no gesto de guardar “bilhetes, cartões de visita, recibos de viagens, cartões de natal e aniversário, recortes de revistas e jornais e calendários dentro de livros”, arrematado por uma confissão “faço-o em nome da preservação da memória e da história”.
Essa disciplina das mãos está ligada à disciplina da memória e ao encantamento com a capacidade que a ciência comporta ao manifestar-se como objetos tecnológicos. Aí estão os smartphones, os computadores, os tablets, as máquinas fotográficas… Novamente, dois universos aparentemente opostos convergem, pois se irmanam para a finalidade de chegar até o outro, comunicar-se com ele. Nos objetos produzidos pelas próprias mãos, nas mídias digitais, nos acervos eletrônicos e físicos, manifesta-se o refinado gosto de preservar e garantir aos que virão o acesso ao intangível guardado pela memória autoral. Uma nota: quando se trata de um aparelho para ressonância magnética, torna-se uma geringonça.
Intangível, relacional e objetual, a memória é também espacial. Não me refiro à virtualidade ou à compartimentalização neuronal, mas aos espaços da infância. São o igarapé, a escola, a casa, a cidade de Manaus modificada vezes sem conta pelas forças históricas, estas bastante tangíveis, que se atualizam nas crônicas de Odenildo Sena para quem vale, no face a face com perdas tão guardadas quanto os objetos e lugares, uma pequena traição a Manuel Bandeira, “como é bom viver quando se tem esperança!”.
Manaus, maio de 2016.
(*) Gabriel Arcanjo Santos de AlbuquerqueDoutor em Literatura Brasileira e professor da Universidade Federal do Amazonas.

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